quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Mariano Amaro

Mariano Amaro


Mariano Amaro era um produto típico de Alfama. As raízes da vida estenderam-se aos genes do craque. Um jogador de geração espontânea, um intuitivo do futebol. No campo era o que era na alma. Por isso, tudo o que o rapaz modesto e simples, arrancado às ruas de Lisboa e tipicamente alfacinha em tudo — até naquele seu andar gingão e afadistado —, fazia em jogo dava a sensação de ser resultado de mil congeminações, de exaustivos treinos. Foi assim que Vítor Santos, naquele seu jeito apaixonante de amassar a psicologia do futebolista com a poesia do jornalismo, lhe traçou o retrato. «Amaro transmitiu-nos sempre a sensação de que nascera com aquilo dentro de si: um sentido de futebol fácil, fluído, natural, não só quanto a execução, mas, principalmente, quanto a uma extraordinária percepção dimensional do jogo, dentro das quatro linhas do rectângulo. Quase nos apetecia dizer, se não fôssemos ferir certos ouvidos mais sensíveis, que Mariano Amaro foi um pequeno Einstein da bola que, sem o menor esforço ou consumidora determinação, descobriu a quarta dimensão do jogo, dando-lhe uma amplitude que talvez nenhum outro jogador português soube, primeiro imaginar, e, depois, explorar como seria aconselhável.»


(Mariano Amaro, de braços cruzados ao lado do guarda-redes, na equipa Campeã de Lisboa 1943/1944)

Como jogador de fina intuição, genuíno de processos, imprevisível nos golpes de génio, quase como Marceneiro na voz do fado, Mariano Rodrigues Amaro, que cedo abandonou o seu ofício de torneiro de metais para se dedicar de alma e coração ao futebol, era um daqueles faz-tudo da bola, capazes de jogar bem em qualquer lugar. Começara a jogar, oficialmente, em 1931/32, pelo Adicense, mas, nos dois seguintes anos limitou-se a jogar futebol de... praia. Ou a nadar no Tejo. Em 1934, inscreveu-se, enfim, no Belenenses. Não foi preciso esperar muito para se tornar o ídolo por que ansiavam todos aqueles que viviam ainda na nostalgia de Pepe...
Com a Cruz de Cristo ao peito, jogaria em todas as posições, até ao guarda-redes. Mas seria como médio-centro que se imporia como estrela de primeira grandeza. Foi em 1935. E assim surgiu a tal quarta dimensão do jogo a que se referiu Vítor Santos. «Ficaram célebres os seus passes e cruzamentos, em especial aquele típico varar do campo com a bola — uma bola verdadeiramente com olhos — a surgir atrás do defesa e à frente do extremo, no flanco contrário. Aquilo era do Amaro — apenas do Amaro, um jogador que dominava um campo como Rommel dominou o deserto.»


(Mariano Amaro, o primeiro jogador a contar da esquerda para a direita em cima, na equipa Campeã Nacional 1945/1946)

Quando Cândido de Oliveira tomou o comando técnico do Belenenses, Mariano Amaro juntou ao jeito rebelde de ser e de jogar uma nova consciência. Social. Se isso lhe deu o carisma que fez com que, naturalmente, assumisse, à entrada para os anos 40, o cargo de capitão da Selecção Nacional, também lhe marcou o destino. Que pior poderia ter sido. Era um líder incontestado. Apaixonante. Mas, em Novembro de 1947, seria despojado do esta-tuto de capitão por questões... políticas, que a censura salazarista manteria, anos a fio, no segredo dos deuses... Nesse ano, antes de um Portugal-Espanha, como começava a ser costume, as equipas perfilaram-se diante da tribuna principal para saudar as entidades oficiais, com o braço erguido. Saudação fascista que eufemisticamente se chamava... olímpica. Três jogadores, todos eles do Belenenses, treinado por Cândido de Oliveira, não fizeram a saudação de braço em riste: Artur Quaresma deixou-se ficar em sentido, José Simões e Mariano Amaro foram mais longe e cerraram os punhos! No campo, mal se deu por isso, mas, depois, a revista Stadium publicou a fotografia, com uns dedos pintados, espetados, à frente das mãos fechadas — boa terá sido a intenção, mas mau foi o retoque. Ficou o gato escondido com o rabo de fora. A bronca estoirou. Os três jogadores chegaram a ser detidos pela PIDE, para averiguações, mas acabaram libertados, salvos, afinal, pela sua qualidade de futebolistas, já que se fossem atirados para os calabouços não haveria hipótese de se encobrir o escândalo, ter-se-ia de explicar porque não jogavam nos domingos seguintes. Decisiva terá sido a influência do capitão Maia Loureiro, figura grada da FPF e homem de confiança do regime, que garantiu que os futebolistas já se tinham desculpado pela «criancice» e prometido nunca mais «repetir a gracinha»...


Boémio e fadista

Meio profissional, meio boémio, trocista com ares de... fadista, Mariano Amaro tornou-se uma das mais poéticas figuras da Lisboa fervilhante dos anos 30 e 40. Porque ele não era apenas um notável jogador de futebol. Era um amante dos pequenos prazeres da vida, que Aurélio Márcio descreveu assim: «Treinava-se de manhã, passava à tarde pelo café Nicola, saía com a rapariga que escolhia entre as muitas que se lhe davam, terminando a noite na jogatina. E sobre tudo isto era um jogador excepcional...»


(Mariano Amaro, o quinto jogador a contar da esquerda para a direita em cima, na Selecção Portuguesa)

Prejuízos de coração

O Belenenses foi o seu clube de sempre. Scopelli, dizendo-lhe que tinha lugar em qualquer equipa do Mundo, quis levá-lo para a Argentina. «Estive meio tentado, mas a mulher pediu-me muito para não ir, não fui.» Várias vezes lhe acenaram com muito dinheiro do Sporting. E do F. C. Porto. «Foi o Pinga que me quis levar, disse-me que iria ganhar o mesmo que ele. Nessa altura ele recebia um conto e quinhentos por mês a posta de bacalhau custava 15 tostões.» O coração fê-lo ficar outra vez nas Salésias. E perder muito dinheiro. Que sempre serviria para compensar as agruras dos seus últimos dias de vida. Pouco antes de morrer recebia de reforma da função pública nove contos por mês, porque só em 1970, falhadas as muitas tentativas como treinador, começara a trabalhar nos telefones.

Textos retirados de “100 figuras do futebol português”, uma publicação do jornal “A Bola”.